A Linguagem Simples II

João Maria de Lima

Na semana passada, falei da Linguagem Simples no serviço público: “Um texto pode ser considerado simples quando suas ideias, palavras, frases e estrutura são apresentadas de forma organizada. Assim quem lê pode encontrar facilmente o que procura; compreender o que encontrou; e, então, usar a informação”. Volto ao tema, conforme prometido. Para avançarmos na temática, analisarei alguns casos a fim de ilustrar a importância de se transmitir informações de maneira simples, objetiva e inclusiva.

Um cidadão que deseja transferir a propriedade de seu veículo, é incentivado a recorrer ao endereço eletrônico do Departamento Estadual de Trânsito (DETRAN-RN) (https://portal.detran.rn.gov.br/servicos/veiculo/transferencia). Lá, encontra a seguinte mensagem no tópico “Documentação Necessária”: “1) Do veículo: Se o CRV ainda for no modelo físico (verde): Autorização de Transferência de Propriedade (ATPV) constante no verso do recibo CRV com assinaturas de comprador e vendedor devidamente reconhecidas em cartório por AUTENTICIDADE”.

Nunca é demais lembrar o artigo 5º da Lei Federal nº 13.460 de 2017, conhecida como Código de Defesa do Usuário de Serviços Públicos: “O usuário de serviço público tem direito à adequada prestação dos serviços, devendo os agentes públicos e prestadores de serviços públicos observar as seguintes diretrizes: (…) XIV – utilização de Linguagem Simples e compreensível, evitando o uso de siglas, jargões e estrangeirismos.” A página do DETRAN-RN cumpre o papel de informar o que significa ATPV, mas deixa a desejar quanto à sigla CRV.

A escolha das palavras é uma das técnicas utilizadas para empregar a Linguagem Simples. O que dizer então deste trecho de documento que trata da contratação de professor em um órgão público: “A bem da verdade, pode-se afirmar que o docente evidencia a fidúcia necessária para exercer a mais adequada atividade de docente, restando consubstanciado o mérito administrativo para contratação, requisito já verificado na construção do programa e convite realizado ao profissional”?

A pergunta básica é esta: uma pessoa que não atua na área jurídica ou administrativa, querendo exercer o direito de fiscalizar ou apenas ler esse documento,  consegue “compreender o que encontrou”? Certamente, as palavras “fidúcia” e “consubstanciado” dificultam a compreensão. Se as substituirmos por outras mais comuns, facilitaremos o entendimento:  … pode-se afirmar que o docente evidencia a confiança necessária para exercer a mais adequada atividade de docente, restando concretizado o mérito administrativo para contratação. Evidentemente, essa versão está longe de ser a melhor em termos de Linguagem Simples, mas já torna mais compreensível o texto.

Segue mais um trecho do contrato já citado: “Urge lembrar também a existência de uma margem de discricionariedade do administrador na escolha do expert a ser contratado, não olvidando, é claro, a necessidade administrativa à qualidade perseguida”.  A quem interessa essa linguagem hermética? Como se trata de documento público, bem mais “cristalino” – uma rápida alusão às preferências da linguagem jurídica – seria escrever: É necessário se lembrar também da existência de uma margem que depende da autoridade do administrador na escolha do profissional a ser contratado, não se esquecendo, é claro, da necessidade administrativa à qualidade desejada.

Os exemplos elencados confirmam que Linguagem Simples não é linguagem informal. Logo, é possível escrever de forma simples e acessível, seguindo as normas da Língua Portuguesa.

 Além do mais, a Constituição de 1988 evidenciou a necessidade de se repensar, construir e comunicar os serviços públicos de uma forma que alcancem todas as pessoas. Quando a administração pública utiliza uma linguagem complexa, com muitas siglas e um vocabulário que não é do conhecimento da maioria, a população tende a se distanciar do governo e deixa de conhecer e acessar oportunidades que o Estado oferece.

Publicado originalmente na Tribuna do norte em 12 de junho de 2022.

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